Qual é o cheiro da vida?
- Marina Linhares
- 11 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 11 de nov. de 2024

Chego na lavanderia em frente a minha casa para lavar as três sacolas de roupa suja que acumulei essa semana. As máquinas estão vazias, faço o pagamento e desbloqueio o uso. Ao abrir a porta da primeira máquina, o cheiro de amaciante invade meu nariz. Gosto do cheiro de roupa limpa, penso, e me sento para esperar depois de preencher a máquina com as minhas roupas.
Percebo que o cheiro do amaciante continua pela lavanderia, e enquanto espero sentada a lavagem das roupas, começo a perceber a sensação que o cheiro me trouxe. Me lembrei de quando chegava a hora de ir para a escola e vestia o uniforme limpo, era como um abraço da minha mãe. De repente, estive de volta a uma infância despreocupada, aos domingos na casa da vó que tinham cheiro do molho da lasanha e som de risos na cozinha.
Quando os cheiros encontram as memórias, as tornam um pouquinho reais mais uma vez, e temos uma outra chance de viver momentos que já passaram, é como abrir uma porta para o passado. É um perfume que abraça, denso e suave ao mesmo tempo. O tempo passado estaria para sempre perdido se não houvesse um outro jeito de ter acesso a ele, um outro meio que não o esforço da vontade, ele está oculto em cheiros privilegiados com o dom de despertá-las.
Acontece assim com o aroma do café, por exemplo: quando a água fervente toca o pó dentro do filtro, o cheiro se aproxima das minhas narinas como uma brisa morna que desperta os sentidos, e há um instante em que o tempo parece suspenso. A cada inspiração, a profundidade do amargor se revela, e mistura-se com as notas quase doces que aparecem depois, há uma calma e um frescor de amanhecer. Esse cheiro ocupa o meu peito logo depois de passar pelas narinas, e se espalha por todo o corpo como um calor aconchegante, tão familiar que toma a forma de uma memória inerentemente agradável, parece um sábado de sol. Ao saborear o café, subitamente me vem à mente uma imagem inédita, à primeira vista indecifrável. Após muito me atentar a ela, e senti-la quase escapar, o aroma se revela como uma lembrança das manhãs na casa da tia Neusa, que oferecia sempre um café fresco para minha mãe.
Tem cheiro que me traz memórias que eu nunca vivi, e esses são difíceis de explicar. Cresci em uma cidade grande, e ninguém na minha família tinha fogão a lenha, mas quando sinto o cheiro da madeira queimando me sinto tocada pela memória de mil invernos, é a natureza revelando o que tem de mais íntimo.
Gosto de sentir o cheiro das pessoas, que hoje em dia tem sido encoberto pelo uso dos perfumes artificiais. Quando abraço alguém, fico frustrada se o cheiro de loja invade meu corpo antes mesmo do cheiro dessa pessoa, são cheiros que não nasceram da pele.
Os cheiros naturais têm uma alma própria, um mistério que não pode ser capturado em frascos, os meu preferidos são o cheiro da chuva que sobe do chão quando a água que cai do céu toca a terra, cheiro de pessoa amada e cheiro de dama da noite e lavanda: cada um desses cheiros é como uma assinatura da natureza, um segredo partilhado comigo e que traz a essência verdadeira da vida.
Há cheiros nas coisas tristes também, é o cheiro de uma saudade que me escapa e que não volta mais, como um aroma guardado numa gaveta esquecida, esse tipo de cheiro fica apenas na memória, não dá para revisitar com o corpo.
O cheiro da vida está em tudo o que nos acorda para o mundo: no suor de um abraço apertado, num travesseiro ainda quente de sono compartilhado, e é feito de contrastes, está na esperança no ar depois da chuva, como se a natureza sussurrasse que ainda há tempo, que o mundo se renova e a gente também, de poeira de caminhos que seguimos, e nos chamam a viver a própria essência, como quem percebe, na simplicidade de cada cheiro, o segredo profundo do existir.
Você expressa sua amorosidade por onde passa e com as palavras que escreve.